Em questão de falta de informação e caos, é possível comparar a pandemia de Covid-19, o novo coronavírus, com o surto que assolou o mundo medieval do século XIV. A peste negra fez com que as pessoas se isolassem e evitassem ao máximo sair às ruas, gerando um pânico na população similar ao que estamos vivendo hoje. Mas, não é apenas a história que consegue nos informar sobre temas como a quarentena e o caos. A arte também faz isso de maneira sublime.
Nos filmes “Monty Python em Busca de Cálice Sagrado”, de Monty Python, e “O Incrível Exército de Brancaleone”, de Mario Monicelli, por exemplo, vemos cenas acerca dos mesmos tópicos. Nas obras, mesmo em meio à uma balbúrdia sanitária, clamando para que Deus os protegesse, os fiéis se juntavam às procissões – mesmo que isso fizesse com que eles, alguns momentos depois, se contaminassem e ficassem doentes. Justamente porque figuras e personalidades de influência precisaram da alarmante multiplicação de óbitos para que se entendesse a gravidade da situação.
Sete séculos depois, Edir Macedo, chefe de uma das Igrejas mais poderosas do Brasil libera um vídeo nas redes sociais afirmando que o medo da Covid-19 é “obra de Satanás”. Além disso, Jair Bolsonaro – presidente eleito democraticamente pela nação – participa de uma manifestação, contrariando as orientações de autoridades da saúde para evitar aglomerações. Como acalmar os ânimos de uma população com “capitães” regados de controvérsia? Nadando contra a maré Bolsonaro, depois de muita hesitação e relutância, o continente europeu e o resto do Ocidente começaram a entender a real dimensão do problema.
No Brasil, a polarização é marca registrada, seja em programas de entretenimento, eleições presidenciais ou questões de saúde pública, como a pandemia da Covid-19. Dois tipos de posicionamentos se destacam entre a população, cada um com sua maior ou menor relevância dentro da bolha social ao qual o indivíduo pertence. Enquanto alguns questionam notícias e dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde, outros levam à sério e demonstram empatia ao próximo.
A preocupação com a economia é um dos fatores que mais influenciam na polarização, afinal de contas, um país com finanças em processo de recuperação e PIB dependente do setor de serviços (73,9% em 2019) não terá bons resultados diante da paralisação de atividades e isolamento social. Quando se coloca em pauta a situação financeira dos trabalhadores de baixa renda no setor terciário, a previsão econômica é ainda pior. Caso a necessidade de isolamento social se prolongue, como pequenos negócios e prestadores de serviço autônomos vão se sustentar? Diante de tamanho prejuízo financeiro, cabe ao governo dar à população auxílio fiscal com foco na parcela mais pobre e prejudicada pelo atual cenário econômico.
Estas circunstâncias levam à polarização: todos preveem graves consequências em suas finanças, mas um grupo se concentra em seguir as orientações em prol da saúde pública, pensando em um bem maior, enquanto outros preferem negar a gravidade da situação e lutam para seguir com suas atividades fora de casa. Infelizmente, não é possível delimitar tal grupo “infrator” como minoria, já que Jair Bolsonaro, o presidente da República, se coloca a favor deste posicionamento, justificando de certa forma a carência de auxílio fiscal em sua gestão.
Entra em meio a este embate outra característica brasileira: o individualismo. Não se trata apenas da disseminação de falsas notícias em prol da restauração do comércio, e é claro, de seu próprio bolso. O temor de uma crise levou a compra desenfreada não só de papel higiênico e álcool em gel: a previsão é de que alguns medicamentos e produtos indispensáveis comecem a faltar nas prateleiras, e brigas por potes de sabonete em mercados vão se tornando comuns na vida do brasileiro.
A necessidade do contato é um aspecto relevante quando se analisa quadros como o atual no Brasil. Ficar em casa, desmarcar viagens e deixar de encontrar amigos ou familiares é uma mudança custosa até mesmo à saúde mental de um povo caloroso. Mais uma vez, a divergência se manifesta: enquanto alguns ignoram as medidas de isolamento social, outros tem tomado atitudes pelo bem estar da comunidade. A organização de compras para a população em risco é cada vez mais comum entre as famílias e condomínios, bem como ligações em vídeo, atendimento psicológico por telefone e transmissões ao vivo de entretenimento aos isolados.
Em meio à todas estas angústias, chegamos à conclusão de que não sabemos quanto tempo este período de isolamento social e incertezas vai durar, apesar de termos previsões. Talvez até junho, talvez até setembro. Mas, também não sabemos o que acontecerá depois; há 700 anos atrás, depois da pandemia, do caos, da desinformação, chegou o Renascimento. Mas e aqui, o que vai acontecer?
“Talvez esse vírus seja mesmo o recado de Deus. Deus natureza cansado do ódio, da ignorância, da irracionalidade, da brutalidade, da violência e da vileza dos mitos e profetas. Um Deus farto das trevas e ansioso por um Renascimento. Aconteceu na Europa, 700 anos atrás.”
(Fernanda Torres, atriz, roteirista e colunista da Folha de S.Paulo)