Após a polêmica repercussão da série “You”, lançada na Netflix no final de 2018, a plataforma surpreende os espectadores em fevereiro com mais uma estreia digna de comentários. A minissérie “Dirty John- O Golpe do Amor”, de oito episódios, segue uma linha similar e corre o mesmo risco de ser mal-interpretada. O texto contém spoilers!
“Ele é um assassino”
Para quem não acompanhou a trama de “You” — ou não está por dentro de sua bombástica reverberação na internet —, vale uma recapitulada: o suspense psicológico narra a história do personagem Joe, um gerente de livraria que se apaixona pela jovem estudante Beck e faz de tudo (mesmo!) para conquistá-la. Até aí parece apenas mais uma série romântica, né? Mas não se engane: Joe é um sociopata violento, que não mede esforços e recursos para conseguir o que quer.
Fora das telas, porém, nem todos enxergaram o potencial criminoso que é Joe. Comentários no Twitter romantizando o personagem chegaram a ser rebatidos até mesmo pelo ator protagonista da série, Penn Badgley. Uma usuária, por exemplo, postou o tweet: “Por favor me sequestre”, e recebeu um “Não, obrigado” do ator. Já quando questionado: “O Penn está partindo meu coração novamente como Joe. Qual é a dele?”, sua réplica foi clara: “Ele é um assassino”.
Foto: IMDb
“Dirty John”: mais um protagonista perigoso
Ao falarmos de “Dirty John”, uma produção da emissora de televisão a cabo norte-americana “Bravo”, o cuidado deve ser ainda redobrado. Isso porque a série, indicada a uma categoria da edição 2019 do Globo de Ouro, é baseada em fatos reais. É isso mesmo que você leu: os episódios de relacionamento abusivo e de outras inúmeras problemáticas são uma adaptação de um podcast de 2017 do repórter Christopher Goffard, do “Los Angeles Times”.
O jornalista, incitado pelas investigações de um possível assassinato em Newport Beach, resolveu averiguar mais a fundo o caso e acabou se deparando com a história do casal Meehan. O resultado não poderia ser outro: o podcast foi baixado mais de 10 milhões de vezes com apenas seis semanas de lançamento.
Foto: IMDb
Tudo começa quando a afortunada designer de interiores Debra Newell (Connie Britton) resolve dar uma chance à vida amorosa — após quatro traumáticos divórcios — e se cadastra em um site de relacionamentos. Logo em seu primeiro encontro é confrontada com o galã John Meehan (Erick Bana), um médico cavalheiro, prestativo e carinhoso, pelo menos à primeira vista.
Arrebatados por uma paixão avassaladora, em dois meses se casam: conta bancária conjunta, casa compartilhada…. O que poderia dar errado? A mulher de meia-idade não suspeitava que, na verdade, estava se relacionando com um golpista.
A verdadeira personalidade de John somente é descoberta depois, quando seu histórico criminal vem à tona. Além de uma prisão por má conduta e furto de medicamentos, ele já havia sido detido por denúncias de assédio e perseguição. É a partir deste momento que Debra se dá conta de seu papel de vítima: ela tinha se enganado pelas mentiras, ameaças e comportamentos obsessivos do marido. Como sair dessa?
Seria a arte imitando a realidade?
A legenda no final de cada episódio indicando ser “inspirada em fatos reais” já alerta para a veracidade dos acontecimentos. Relacionamentos abusivos, cárcere psicológico e violência doméstica contra mulheres são temáticas recorrentes que devem ser abordadas com delicadeza.
O estudo intitulado “Módulo de Violência da Pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado”, de 2010, comprova a frequência deste panorama: duas em cada cinco mulheres entrevistadas afirmaram já ter sofrido algum tipo de violência ao menos uma vez na vida, sobretudo algum tipo de controle ou cerceamento (24%), alguma violência psíquica ou verbal (23%) ou alguma ameaça ou violência física propriamente dita (24%). Já uma pesquisa da ONU comprovou que três de cada cinco mulheres já foram vítimas de relacionamento abusivo.
Os números, embora já expressivos, não representam a totalidade dos casos. Segundo a psicóloga Beatriz Brambilla, professora da PUC-SP e atual coordenadora do Centro de Referências Técnicas de Psicologia e Políticas Públicas, os dados ainda são subnotificados, tendo em vista a difícil classificação dos tipos de violência (nem todas são criminalizadas pela Lei Maria da Penha) e o estigma associado à abertura dos Boletins de Ocorrência.
Em suas palavras, “a violência psicológica inclui a ameaça, a humilhação, a chantagem, o controle e o impedimento do contato com a família e amigos”, justamente o que se passa com a protagonista da série. Assim como na “vida real”, a mulher se isola, e vai se sentindo cada vez mais desqualificada e humilhada pelas atitudes do marido.
A profissional também aponta para outros danos emocionais, como a diminuição da auto estima e o maior controle dos próprios comportamentos e crenças, fruto deste constrangimento. Desvincular-se desta situação é mais difícil do que parece: além da comum culpabilização da vítima, os episódios de violência normalmente são seguidos de discursos esperançosos, com promessas de mudança por parte do homem.
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Não é “mimimi”!
Obras que retratam a violência psicológica, em comparação com as que mostram a violência física, podem não provocar tanta repulsa nos espectadores. A psicóloga explica: “em uma sociedade como a nossa, patriarcal e instituída nas relações do machismo, muitas vezes a violência psicológica é subestimada. E de que forma? Entendendo que ‘tudo bem’ as mulheres serem tratadas desta forma, ‘tudo bem’ elas serem coagidas e ‘tudo bem’ elas serem silenciadas — até porque a voz delas não necessariamente deve ser ouvida.”
Debra é uma metáfora. Das milhares de mulheres que, aleḿ de presas em relacionamentos abusivos ou vítimas diárias de violência doméstica, ainda recebem da sociedade o rótulo de “culpadas”. John é um assediador, perseguidor, obsessivo. Tudo, menos um personagem a ser romantizado.