Samba, dança, cores, sorrisos, suor. É mais ou menos assim que o Brasil se resume em fevereiro (às vezes março), mês do Carnaval. “Os problemas são esquecidos, é só festa, é só alegria”. Talvez seja essa a ideia que constrói o imaginário do brasileiro desatento à batalha que é construir tamanho evento, tanto em termos de estrutura como de significado.
É hora de desfilar pela avenida, se esforçar, curtir, e o mais importante, ser visto. A visibilidade das escolas de samba é grande e, com certeza, não foi desperdiçada este ano. Em tempos de intolerância e radicalização política, algumas das principais escolas escolheram retratar a realidade brasileira em seus enredos. Vencedoras, ou não, brilharam e despertaram sentimentos. Conheça-as:
- Estação Primeira de Mangueira
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A Mangueira trouxe este ano o enredo “A Verdade Vos Fará Livre”, frase bíblica e usada pelo atual presidente, Jair Bolsonaro. A campeã de 2019 questionou como seria se Jesus voltasse para a atualidade, em um mundo intolerante. No caso, ele apareceu na Sapucaí como mulher, índio, e um menino negro com balas alojadas no corpo. O samba-enredo também chama atenção da origem humilde de Jesus e protesta contra o número de mortos nas comunidades:
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no buraco quente
Meu nome é Jesus da Gente
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro, desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
(…)
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque, de novo, cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais na escuridão
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão
Favela, pega a visão
- Grande Rio
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A Grande Rio, que ficou com o segundo lugar das escolas do Rio de Janeiro, escolheu a tolerância religiosa como tema. O enredo “Tata Londirá: o Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias” contou a história de Joãozinho da Gomeia, líder do Candomblé. Baiano, negro e homossexual, Gomeia é um dos mais famosos líderes religiosos do Brasil.
Salve o candomblé, Eparrei Oyá
Grande Rio é Tata Londirá
Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé
Eu respeito seu amém
Você respeita o meu axé
(Respeita o do axé)
- União da Ilha do Governador
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Com o tema “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: salve-se quem puder”, a União da Ilha criticou as falsas promessas de autoridades políticas, desde o processo de campanha eleitoral até o início de mandatos, e a desigualdade social.
Eu sei o seu discurso oportunista
É a ganância, hipocrisia
O seu abraço é minha dor (seu doutor)
Eu sei que todo mal que vem do homem
Traz a miséria e causa fome
Será justiça de quem esperou
O morro desce o asfalto e dessa vez
Esquece a tristeza agora
- São Clemente
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A São Clemente, com o tema “O conto do Vigário”, caminhou pela história do Brasil mostrando vigarices e falcatruas, tanto de pessoas quanto de tecnologias. Algumas temáticas exploradas foram os golpes passados pelas redes sociais e as fakes news. A escola fez referências como a grávida de Taubaté e venda de pedaços no céu. O humorista Marcelo Adnet se destacou em cima de uma alegoria ao imitar o presidente Jair Bolsonaro. A atuação se baseou em fazer arminha com a mão e enganar nas flexões de braço, como o presidente fez em um vídeo que viralizou.
Só trabalho com dinheiro
Chamou o VAR, tá grampeado
Vazou, deu sururu
Tem marajá puxando férias em Bangu
Balança na rede
Abre a janela, aperta o coração
O filtro é fantasia da beleza
Na virtual roleta da desilusão
Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu
E o país inteiro assim sambou
Caiu na fake news
- Acadêmicos do Salgueiro
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O tema do Salgueiro fala sobre a luta negra em busca da liberdade e igualdade. “O Rei Negro do Picadeiro” homenageou Benjamin de Oliveira, primeiro palhaço negro do Brasil, que completaria 150 anos em 2020.
Olha nós aí de novo
Pra sambar no picadeiro
Arma o circo, chama o povo, Salgueiro
Aqui o negro não sai de cartaz
Se entregar, jamais
Na corda bamba da vida me criei
Mas qual o negro não sonhou com liberdade?
Tantas vezes perdido, me encontrei
Do meu trapézio saltei num voo pra felicidade
Quando num breque, mambembe moleque
- Águia de Ouro
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A campeã do carnaval de São Paulo levou para o Sambódromo do Anhembi um enredo sobre educação. Com o título “O Poder do Saber – se saber é poder… Quem sabe faz a hora, não espera acontecer” o samba-enredo prestou homenagem ao educador Paulo Freire e exaltou a evolução do conhecimento humano. A escola mostrou que nem tudo que o homem fez com seu conhecimento foi para o bem. Um dos exemplos foi a alegoria que criticava a destruição da cidade japonesa Hiroshima por bombas nucleares ao final da Segunda Guerra Mundial.
Águia, em suas asas vou voar
E no caminho da sabedoria
Páginas da história desvendar
Sou eu no elo perdido um desbravador
O tempo é o meu senhor
Em busca da evolução
Criar e superar limites da imaginação
A mente dominar
Jamais deixar de acreditar
Brincar de Deus recriar a vida
Desafiar, surpreender
Na explosão a dor, uma lição ficou
Sou aprendiz do criador
- Barroca Zona Sul
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A escola que estava há 15 anos sem desfilar no grupo especial teve como enredo a exaltação da resistência negra contra a escravidão no século XVIII. Para isso, a Barroca contou a história de Tereza de Benguela, mulher negra que foi trazida da Angola para o Brasil como escrava. Ela tornou-se, por assim dizer, rainha do Quilombo do Quariterê, destacando-se de início por dirigir um Quilombo multiétnico, isto é, com o predomínio de negros, índios e caburés – mestiços de negros e índio, o cafuzo.
No caminho do amanhã
Obatalá
É a luz que vem do céu
Clareia
Vem de Benguela o clamor de liberdade
Barroca pede tolerância e igualdade
Axé, Tereza
Divina alteza meu tambor foi te chamar
Sua luz nessa avenida
Incorpora a chama yabá
Da magia irmanada por odé
Não sucumbe a fé, traz a luta de Angola
E a corrente arrastou pro sofrimento
Um sentimento, valentia quilombola
Reluz o ouro que brota em seu chão
Desperta ambição, mas há de raiar o dia
Do Guaporé ser voz de preservação
Em plena floresta
Auê auê
- Mancha Verde
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Já a Mancha Verde escolheu falar sobre igualdade de gênero e racial, partindo do enredo “Pai! Perdoai, eles não sabem o que fazem!”. A escola também fez referência a Ministra Damares com uma ala chamada “Homem veste azul, Mulher veste rosa” e à mães que perderam seus filhos para a violência.
Eu choro ao ver que o pecado me consome
Sou as duas faces desse homem
Que há de vencer o mal
É preciso lutar, exaltando Penhas e Marias
Que clamam por direitos, igualdade
Essa é a tua vontade
Em nome do pai, amém
Justiça e paz, aos homens de bem
Deus não criou raça, e nos ensinou
Aos olhos não existe cor
- Tom Maior
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Intitulado como “É coisa de preto”, o enredo da Tom Maior falou sobre igualdade e liberdade negra, relembrando em suas alas várias personalidades importantes, como Machado de Assis e Mano Brown. Foi feita uma alegoria gigante de Marielle Franco, vereadora negra, feminista, que lutava pelos direitos. Ela foi assassinada em 2018 no mesmo crime que matou seu motorista, Anderson Gomes. A alegoria chamou atenção ao representar a violência policial, que inclusive, Marielle criticava. A escola também exibiu uma faixa com a frase: “As minorias são maioria”.
A negra inspiração é poesia
A arte de criar é quem me guia
de um baobá
Um pensamento de amor
Herança que a mordaça não calou
A negra inspiração é poesia
A arte de criar é quem me guia
Floresce de um baobá
Um pensamento de amor
Herança que a mordaça não calou
Se a vida deixou cicatrizes
Ideais são raízes do meu jeito de viver
Faço da minha negritude
Um legado de atitude, inspiração pra vencer
Lutar, é preciso lutar por igualdade
Liberdade, fazer da resistência uma nova verdade
Soprando a poeira da história
A nobreza em meus olhos brilhou
É o dia da nossa vitória
Conquistada sem favor
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The article above was edited by Bruna Sales.
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