O que é um ícone? Palavra de origem grega, para os religiosos, diz respeito a imagens de santos e mártires. Na semiótica, um signo visual que representa algo semelhante a ele. Na cultura popular, uma pessoa de grande importância e que transcende gerações. E, na dramaturgia brasileira, é Fernanda Montenegro, que completa 95 anos de vida nessa quarta (16).
Arlette e Fernanda
Arlette Pinheiro Esteves da Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1929. Neta de imigrantes italianos e portugueses, filha de um operário e de uma dona de casa, começou a carreira na Rádio MEC, aos 15 anos, trabalhando como locutora, redatora e radioatriz. Ainda na adolescência, fez curso de secretariado e deu aula de português para estrangeiros na escola Berlitz.
Foi ainda na rádio que adotou o nome artístico Fernanda Montenegro. “Era locutora como Arlette Pinheiro e redigia como Fernanda Montenegro. Achei que tinha uma curtição, uma coisa à lá século XIX. Era um nome que… não existia, a gente criou esse nome”, explicou em entrevista à Globo.
Início de carreira nos palcos e nas telas
Trabalhou na Rádio por dez anos, o que, segundo a atriz, “foi a universidade que não teve”. Em dezembro de 1950 foi contratada pela TV Tupi. A estreia no teatro aconteceu no mesmo ano, na peça 3.200 metros de altitude, ao lado de seu futuro marido Fernando Torres. Ficou na Tupi por dois anos, participou de aproximadamente 80 peças e, em 1952, ganhou o prêmio de Atriz Revelação da Associação Brasileira de Críticos Teatrais pelo trabalho em Está Lá Fora um Inspetor e Loucuras do Imperador.
Em 1959, fundou a própria companhia teatral, o Teatro dos Sete, junto de Fernando Torres, e da qual também participavam Sergio Britto, Ítalo Rossi, Gianni Ratto, Luciana Petruccelli e Alfredo Souto de Almeida. Contratada em 1963 pela TV Rio, atuou nas novelas Amor Não é Amor e A Morta Sem Espelhos. Fez participação na série de teleteatro da recém-criada TV Globo 4 no Teatro, em 1965, quando também estreou no cinema, com o filme A Falecida.
O casamento com Fernando Torres
Fernanda se casou com o ator e diretor Fernando Torres em abril de 1953, aos 23 anos, e passou a assinar como Arlette Pinheiro Monteiro Torres. Da união, nasceram dois filhos: Claúdio Torres, cineasta e Fernanda Torres, que também se tornou atriz.
O casamento durou 55 anos, até o falecimento de Fernando, em 2008. No documentário Tributo, do Globoplay, a atriz relembrou momentos com o marido e agradeceu a parceria de trabalho e de vida. “Sem Fernando, minha vida não se cumpriria. Tínhamos uma vocação inarredável, mas fomos nos suportando, nos salvando e nos amando. Eu tive nele não um concorrente destrutivo. Tive um ajutório. Antes do trabalho, foi uma identificação celular”.
Principais trabalhos
Estreou na TV Globo em 1981 na novela Baila Comigo, a convite de Manoel Carlos e viveu a personagem Sílvia Toledo Fernandes. Dois anos depois, viveu Charlô em Guerra dos Sexos, protagonizando, ao lado de Paulo Autran, a emblemática cena da guerra de comida na mesa de café da manhã. Participou ainda de grandes sucessos como Sassaricando (1987), Rainha da Sucata (1990) e Passione (2010). Em 2005, interpretou a vilã Bia Falcão em Belíssima, um papel que se tornou referência de “perrengue chique” na internet. Em Babilônia (2014), interpretou Teresa, personagem que mantinha um relacionamento homossexual com Estela, vivida por Nathália Timberg. Sua última participação em novelas foi em 2019, na primeira fase de A Dona do Pedaço.
Nos palcos, venceu prêmios com A Moratória (1955), Mary, Mary (1963), Mirandolina (1964), A Mulher de Todos Nós (1966), É… (1977), As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1982), Dona Doida (1987) e The Flash and Crash Days (1993), onde atuou ao lado da filha.
No cinema, estrelou o filme Eles Não Usam Black Tie (1981), adaptação da peça de Gianfrancesco Guarnieri e que foi premiado no Festival de Veneza. Em 2004, foi dirigida pelo filho Cláudio Torres, em Redentor e pelo genro Andrucha Waddington em Casa de Areia (2005). A atriz também já interpretou a mãe de Florentino Ariza (Javier Bardem) em Love in The Time of Cholera (Amor nos Tempos de Cólera). Em 1999, fez Nossa Senhora na minissérie O Auto da Compadecida, adaptação da obra homônima de Ariano Suassuna que foi transformada em filme no ano seguinte.
A convite de Guel Arraes, também diretor de O Auto da Compadecida, protagonizou Doce de Mãe, especial de fim de ano da TV Globo em 2012. A personagem Dona Picucha lhe rendeu o Emmy Internacional de Melhor Atriz e o especial acabou se tornando seriado. Dois anos depois, Fernanda foi indicada mais uma vez e o programa venceu a categoria de Melhor Comédia.
Central do Brasil e o Oscar
“Um dia, o Walter Salles me chamou: ‘Fernanda, gostaria que você lesse um roteiro’. Eu li e achei lindo, simples. Uma equipe pequena. Começamos. Não se esperava isso tudo. Fizemos um filme quase em segredo. Um dia, o filme ficou pronto. Começamos a levantar prêmios por onde a gente ia, e chegamos ao Oscar”, disse Fernanda ao Memória Globo em 2002. O filme conta a história de Dora, uma professora aposentada que escreve cartas para analfabetos e que resolve ajudar Josué (Vinícius de Oliveira) a encontrar o pai.
O filme foi a primeira produção brasileira a receber o Urso de Ouro no Festival de Berlin e Fernanda levou o Urso de Prata de Melhor Atriz. Tanto a produção quanto a atriz também foram premiados pelo National Board Review. Central do Brasil ainda levou o BAFTA de Melhor Filme em língua não inglesa e o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro.
Na 71a edição do Oscar, em 1999, o longa recebeu a nomeação na categoria de Melhor Filme Estrangeiro e Fernanda foi a primeira latina indicada para Melhor Atriz, concorrendo ao lado de nomes como Meryl Streep e Cate Blanchett. A atriz perdeu para Gwyneth Paltrow em Shakespeare Apaixonado e há quem, até hoje, acredite que o resultado da premiação não foi dos mais justos.
Projetos atuais e futuros
A última participação de Fernanda no cinema foi em Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. Ela divide a personagem Eunice Paiva com a filha Fernanda Torres, que interpreta a versão mais nova da protagonista. O filme está participando de Festivais ao redor do mundo e sendo cotado como um dos possíveis indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Fernanda Torres como um dos possíveis nomes a concorrer pela estatueta de Melhor Atriz em 2025.
Atualmente, ela está trabalhando no longa Velhos Bandidos, onde terá como par o também veterano Ary Fontoura e elenco formado por Vladimir Brichta, Lázaro Ramos e Bruna Marquezine.
Em 2023 e 2024, voltou aos teatros com a leitura de A Cerimônia do Adeus, da escritora Simone de Beauvoir. Em sua última sessão, em agosto desse ano, gratuita no Parque Ibirapuera em São Paulo, foi assistida por mais de 15 mil pessoas. Segundo a própria Fernanda, o maior público de sua carreira.
As memórias e a imortalidade
Em setembro de 2019 lançou Prólogo, Ato, Epílogo, autobiografia escrita em parceria com Marta Góes. Em entrevista para a Globo, Fernanda explicou que o livro “é um diário de bordo. Eu me pus de dentro (no livro)” e é uma forma de contar sua própria história e daqueles que conviveram com ela.
No fim de 2021, foi a primeira atriz eleita imortal pela Academia Brasileira de Letras e ocupa a cadeira 17, sucedendo o diplomata Affonso Arinos de Melo Franco. Tomou posse em março de 2022.
Em comemoração ao 95º aniversário, será lançado no Globoplay o especial Tributo, que falará sobre a carreira e a vida da atriz, que participará do programa, assim como Fernanda Torres. Em trecho da produção, Montenegro admite que pensa na morte e sente saudades de amigos que já se foram, mas ainda quer celebrar um século de vida.
Independentemente do que o futuro guarda, a referência a uma das maiores atrizes do país é imortal, assim como sua iconicidade. Se, como ela mesma disse, “a vida é um palco”, então Fernanda Montenegro é uma eterna protagonista. Sua presença fascina, suas interpretações encantam, e sua luz jamais se apagará, mesmo quando as cortinas finalmente se fecharem e as luzes do teatro apagarem.
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O artigo acima foi editado por Beatriz Martins.
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