As eleições brasileiras de 2024, que irão eleger prefeitos e vereadores, lidam com um desafio até então sem grandes precedentes no histórico eleitoral brasileiro: o artefato das inteligências artificiais como arma política.
Nos últimos anos, foi possível acompanhar um desenvolvimento considerável de tecnologias de manipulação de voz e imagem, que possibilitam a disseminação de notícias falsas e conteúdo alterado de maneira bastante complexa de se rastrear. À medida que se desenvolvem, essas tecnologias se tornam cada vez mais acessíveis para a população geral.
No último dia 27 de fevereiro, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou resoluções para o enfrentamento da desinformação e do uso indevido de IA generativa nas eleições municipais de 2024. Dentro do conjunto de 12 resoluções, relatadas pela ministra Cármen Lúcia, é definida a obrigatoriedade de rotulação de conteúdos gerados por inteligência artificial e a responsabilização das plataformas que hospedarem determinados conteúdos no período eleitoral.
Tecnologias como as deep fakes, que se originaram em meio a fóruns online – e eram usadas para criação de vídeos de caráter pornográfico de celebridades e pessoas públicas -, permitem manipulações altamente realistas de falas e vídeos. Ultimamente, elas vêm sendo utilizadas também para alterar e manipular falas e discursos de políticos e candidatos.
Foi o que ocorreu recentemente em meio às eleições argentinas, quando apoiadores do agora eleito Javier Milei veicularam um vídeo manipulado em que o opositor Sérgio Massa fazia uso de cocaína. O vídeo atingiu a casa das 100 mil visualizações no X (antigo Twitter), e foi veiculado com aviso de “conteúdo adulterado” no Instagram, que não retirou a postagem.
contexto brasileiro
No Brasil, a preocupação diante da disseminação de fake news, que já conturbou eleições passadas, provocou uma resposta mais robusta das autoridades. A resolução nº 23.714/2022 do TSE já tratava da questão das notícias falsas, ampliando o poder de polícia do tribunal para atuar de ofício, ou seja, sem precisar ser provocado.
No cenário das eleições presidenciais de 2022, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que “a propagação generalizada de impressões falseadas de natureza grave e antidemocrática, que objetivam hackear a opinião pública, malfere o direito fundamental a informações verdadeiras e induzem o eleitor a erro”.
Esse ano, em alteração à resolução nº 23.610/2019, que trata de propaganda eleitoral, foram adicionadas diretrizes que abrangem diretamente o uso de IA. Por exemplo, o artigo 9º-C proíbe a utilização, na propaganda eleitoral, “de conteúdo fabricado ou manipulado para difundir fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral”.
Apesar dos esforços que vêm sendo feitos, especialistas afirmam que a legislação brasileira ainda precisa se atualizar quanto às regras de combate à desinformação. Propostas sobre o tema tramitam no Congresso, porém não existe uma legislação específica que estabeleça critérios de fiscalização para notícias falsas no Brasil.
As eleições a partir do ano de 2018 no Brasil foram especialmente marcadas pela circulação de fake news, pelo uso de bots no engajamento de discursos políticos e por acusações de candidatos se beneficiando desses disparos massivos de informações intencionalmente falsas.
o uso político da ia
Um levantamento da ONG Freedom House apontou que foram utilizadas ferramentas de distorção de texto, imagem e áudio para fins políticos ou sobre questões sociais em ao menos 16 países pelo mundo.
Segundo a organização, que se coloca como defensora da democracia e dos direitos humanos, o uso crescente de informações falsas geradas por inteligência artificial aumenta o desafio do chamado liar’s dividend, termo cunhado pelos professores Bobby Chesney e Danielle Citron, que se refere ao contexto de confusão gerado pela disseminação de notícias falsas.
Com o aumento da veiculação de conteúdo duvidoso, a credibilidade de notícias verdadeiras também é afetada, visto que a população passa a desacreditar mais facilmente do que é veiculado nas mídias.
Além do exemplo argentino, um caso recente de possível interferência de inteligência artificial generativa em uma eleição se deu na Eslováquia. Às vésperas das votações, um áudio fabricado mostrava uma conversa entre o líder liberal Michal Šimečka e uma jornalista, onde se discutia uma suposta compra de votos da minoria Roma presente no país.
O áudio logo foi denunciado como falso, porém, por ter sido veiculado numa janela de 48 horas pré-votação em que, pela regra eleitoral eslovaca, políticos e veículos midiáticos devem se manter em silêncio, foi difícil de ser desacreditado. O candidato perdeu as eleições para o partido opositor.
Especialistas eslovacos alertaram que as IAs já são avançadas o suficiente para afetar o processo eleitoral, enquanto eles carecem de ferramentas para frear essas movimentações.
é possível conter o problema?
Pela primeira vez, o TSE atribuiu responsabilidade direta às plataformas, que devem remover conteúdos categorizados como falsos independentemente de ordem judicial prévia. A veiculação de notícias falsas pode inclusive resultar na perda de monetização de canais ou perfis.
Na prática, o controle efetivo da circulação de conteúdos recai sobre a discussão acerca da regulação das mídias, tema polêmico que levanta debates sobre liberdade de expressão online e segurança nas redes.
Apesar do avanço no desenvolvimento de medidas e estratégias de contenção por parte de governos no espectro democrático, se nota uma dificuldade na transformação dessas medidas em leis claras e efetivas.
No Brasil, o projeto que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet ficou conhecido como PL das Fake News. Apresentado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE), ele foi votado em 2020 no Senado e passou por uma comissão na Câmara, mas seguiu travado diante do impasse dos deputados.
O projeto de lei, que aguarda pauta da Câmara, sofre rejeição das alas mais conservadoras – tanto do parlamento quanto da sociedade –, que argumentam censura e diminuição da liberdade de expressão nessa tentativa de regulação das mídias.
Também tramita atualmente no Senado o projeto de lei n° 2338/2023, que pretende regular especificamente o uso de inteligência artificial. Caso seja aprovada, a proposta segue para revisão na Câmara dos Deputados para, então, poder ser sancionada pelo Presidente da República.
Para o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado e autor da proposta, é “imperativo” avançar na regulação da inteligência artificial e das plataformas de redes digitais: “Sabemos que, sem a necessária regulamentação da inteligência artificial, estes instrumentos podem, entre outros males, distorcer a vontade popular, sobretudo em ano eleitoral”.
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O artigo abaixo foi editado por Maria Cecília Dallal.
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