Nos últimos anos, os cigarros eletrônicos se popularizaram muito, principalmente entre os jovens. A fumaça, que havia sumido com a redução do fumo, reapareceu nos arredores de escolas e faculdades, em festas universitárias e parques. Mas, afinal, o que exatamente é esse objeto? E, sobretudo, quais os seus malefícios?
Também conhecido como vape ou pod, o cigarro eletrônico encontra-se, hoje, em sua quarta geração. Apesar disso, sua estrutura básica foi pouco modificada., Foram conservados os quatro segmentos fundamentais do produto: bocal, reservatório de líquido, bateria e atomizador. Quando ligado, as duas últimas partes realizam, respectivamente, o aquecimento e a vaporização do líquido, o qual é inalado por meio do bocal. Ao longo do tempo, o produto recebeu, além de novas cores e formatos, baterias mais potentes e tornou-se capaz de produzir moléculas de aerossol cada vez menores.
CONTEXTO
Idealizado em 2003 por Hon Lik, farmacêutico chinês e fumante, o cigarro eletrônico nasceu como uma alternativa ao de papel. Para o inventor, que tentava se livrar dos componentes cancerígenos do cigarro tradicional, o novo dispositivo representava uma possibilidade de continuar a receber nicotina sem necessariamente aspirar monóxido de carbono. Todavia, a expectativa de Lik não se concretizou. Atualmente, ele faz uso das duas versões.
Desde sua criação, o cigarro eletrônico esteve envolto por polêmicas. Os casos recentes de lesões e mortes causadas pelo dispositivo, reacenderam o debate sobre os seus malefícios e a validade enquanto forma de combate ao cigarro tradicional. Entre 2019 e 2020, ocorreram 2807 internações e 68 mortes por EVALI (doença pulmonar causada por dispositivos eletrônicos para fumar) nos Estados Unidos, conforme reportado pelo CDC (Centers for Disease Control and Prevention).
A fim de compreender melhor todas as questões envolvendo esse dispositivo, cuja venda é proibida no Brasil, a Her Campus conversou com a Dra. Jaqueline Ribeiro Scholz, médica cardiologista, pioneira no tratamento do tabagismo no Brasil, diretora do Programa Ambulatorial de Tratamento ao Tabagismo do Incor e livre docente da Faculdade de Medicina da USP.
Primórdios do Cigarro Eletrônico
“No começo, as pessoas não usavam o cigarro eletrônico como substituto. Com o surgimento da Lei de Restrição (lei que proibiu as pessoas de fumarem em ambientes fechados), ele serviu como alternativa para os fumantes que não queriam deixar de fumar em ambientes fechados. Eles faziam o que nós chamamos de uso bi dual, usavam o cigarro convencional e o cigarro eletrônico”, esclarece a médica.
Scholz explica que as pesquisas iniciais sobre os malefícios do cigarro eletrônico focaram, majoritariamente, em uma comparação entre a quantidade de toxinas dos dois tipos de cigarro. Isso levou, precipitadamente, à conclusão de que a versão eletrônica era pouco perigosa e que, portanto, poderia ser utilizada livremente. “Claro que em máquinas de fumar a quantidade de substâncias tóxicas é menor, porém isso não garante ao usuário nenhum selo de segurança.”
Malefícios
Quanto à segurança do produto, há diversos danos à saúde já descritos cientificamente.
A cardiologista alerta para os componentes das essências, como acetato de vitamina E, diacetil, propileno glicol e glicerina vegetal. Tidos por muitos usuários como inofensivos, por estarem presentes em aromatizantes e aditivos alimentares, quando inalados, podem causar furos e cicatrizes nas vias respiratórias, EVALI (doença pulmonar decorrente de dispositivos eletrônicos para fumar), bronquite obstrutiva crônica, enfisema pulmonar, além de pneumonia adquirida.
“Uma coisa é você colocar isso (aditivos e aromatizantes) no seu intestino, que tem enzimas, tudo para a proteção, para receber o alimento. O pulmão foi feito para receber ar”, ressalta a profissional.
A médica explica ainda que a última geração de vapes produz partículas de aerossol ultrafinas, as quais têm a capacidade de atravessar os alvéolos pulmonares e ganhar a corrente sanguínea. Quando isso acontece, primeiramente, há a inflamação do pulmão e, depois, ocorre a deflagração de um processo inflamatório na parede dos vasos sanguíneos, chamada de endotélio. Isso pode resultar em lesões e rompimentos vasculares e, consequentemente, em eventos cardíacos. “Do nada, o indivíduo pode fazer um AVC ou um enfarte, ou ter uma síndrome coronariana e até uma morte súbita.”
O risco cardiovascular é, efetivamente, um dos que mais preocupa. “Já existem estudos que demonstram que o usuário do cigarro tradicional e o do eletrônico estão sujeitos ao mesmo risco de ter enfartes e AVCs, o qual é o dobro do das pessoas não fumantes.”Em relação ao risco cancerígeno, o pouco tempo de uso exclusivo do cigarro eletrônico impede respostas conclusivas. Apesar disso, já foram identificadas mais de 10 substâncias carcinogênicas em líquidos para vape, como nitrosaminas, formaldeído e metais pesados.
Praticidade e hábito
Outro fator perigoso dos cigarros eletrônicos é a praticidade. A facilidade de manuseio, bem como a aceitação social, favorece um uso contínuo, por horas a fio. Dessa maneira, o indivíduo acaba absorvendo uma quantidade enorme de nicotina, muitas vezes, superior à de um fumante tradicional. Isso leva a um aumento acelerado da dependência e, consequentemente, a mais e mais consumo.
“Eu nunca vi o cigarro convencional matar tão rápido. A conta do cigarro, geralmente, vem depois de 30, 40, 50 anos de exposição”, ilustra Scholz. Também pode ser observada diferença no tempo necessário para a fidelização do usuário. “O cigarro convencional, entre você experimentar e passar a consumir com regularidade, vai um período de seis meses a um ano. No cigarro eletrônico, esse período é inferior a três meses.”
O cigarro eletrônico é uma boa ferramenta para parar de fumar?
“Precisamos fazer os fumantes pararem de fumar e não trocarem uma coisa por outra que gera dependência da mesma maneira e que não oferece nenhuma segurança”, observa a pioneira no tratamento do tabagismo no Brasil.
Ela expõe a grande evolução na abordagem clínica. “Não tem sentido você propor o cigarro eletrônico, quando se tem um tratamento sofisticado, que pode, de fato, libertar as pessoas da dependência. Lá em 1993, quando eu comecei, a taxa de sucesso (do tratamento) era de vinte por cento. Hoje, ela é de setenta por cento”.
Surpreendentemente, a médica conta que, durante o tratamento, solicita a seus pacientes usuários de cigarro eletrônico que eles o larguem e voltem a fumar o cigarro tradicional. Isso porque o uso da versão de papel não perdura por longos períodos e é intervalado.
Ela combina essa técnica com outra, chamada “fumar de castigo”, que consiste em pedir ao fumante que, toda vez que ele for fumar, volte-se para uma parede branca e não faça nada além de tragar o cigarro. A partir dessa combinação, desnaturaliza-se o ato de fumar e, com o auxílio de medicamentos, aos poucos, diminui-se a dependência.
Scholz ressalta a importância do cuidado com a saúde mental para o tratamento tabagista. “Se você não trata a depressão e ansiedade, a pessoa não vai parar de fumar”. Ela explica, ainda, que adolescentes e jovens que fumam podem ter maior propensão ao desenvolvimento de doenças mentais, no futuro. “O cérebro do jovem está em formação até os 25 anos. Ele tem o que nós chamamos de plasticidade cerebral. Quando você introduz drogas nesse funcionamento, você interfere com a formação cerebral.”
Problema de saúde pública
No final da conversa, a médica lamenta o retrocesso das políticas antitabagistas brasileiras e demonstra preocupação com as consequências futuras do crescimento do uso do cigarro eletrônico para o Sistema Unificado de Saúde. “O impacto que isso vai causar no SUS vai ser terrível”.
Ela pede maior fiscalização do comércio ilegal de cigarros eletrônicos por parte das autoridades e, também, responsabilização daqueles que promoverem o uso desses dispositivos.