Her Campus Logo Her Campus Logo
Culture

Festival de Águas Claras: O Que Foi a Woodstock Brasileira

This article is written by a student writer from the Her Campus at Casper Libero chapter.

“Acho que Águas Claras era como participar de um movimento, de algo que é maior do que você”, comenta Gabriella Tagliacozzo, 54, que nos anos 80 participou de uma das quatro edições de um evento musical na Fazenda Santa Virgínia, na cidade de Iacanga, interior de São Paulo. O chamado Festival de Águas Claras, além de um evento musical e cultural, foi o pontapé inicial para que vários outros festivais de música surgissem no país, como o Rock In Rio, que teve sua primeira edição em 1985  e atualmente é um dos maiores festivais de música e referência no mundo todo.

Outros festivais que acontecem no país durante o ano em diferentes estados e cidades são João Rock, Coala Festival, Planeta Atlântida, Festival Sarará e Festival Bananada, que reúnem desde artistas que estão no ‘mainstream’ até os mais independentes, dando voz, espaço e diversidade para a música e a cultura brasileira. Considerando que o Festival aconteceu durante o período da ditadura militar, ele representou a voz de muitos jovens que estavam descontentes com a política e queriam liberdade para expressar suas opiniões e desejos, que se realizou através da produção musical e artística.   

Contexto

Em 1970, o Brasil passava por uma crise na democracia em meio a ditadura militar. A censura era algo muito presente, e tinha como objetivo calar aqueles que pensavam de maneira oposta ao regime imposto pelos militares. Nessa época, as perseguições, desaparecimentos e mortes eram muito comuns como atos de impedir a propagação de opiniões julgadas como “erradas” ou “inadequadas” por aqueles que estavam no poder. De acordo com dados da Comissão Nacional da Verdade e do Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos divulgados em 28 de junho deste ano, houve no período militar por volta de 434 mortos e desaparecidos e 20 mil torturados. A maior concentração desses números se deu durante o Ato Institucional Número 5 (AI-5), que endureceu as medidas e aumentou a repressão.

Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos, estava ecoando os sons de Woodstock – festival de música que aconteceu em uma fazenda perto de White Lake, no estado de Nova York, em 1969, juntando hippies e amantes da música para uma celebração de ‘Paz e Amor’ durante quatro dias.

O Festival de Woodstock foi uma manifestação da contracultura, movimento de mobilização e contestação social através de meios de comunicação de massa, sendo classificado como underground e alternativo. Woodstock tinha como princípio a busca pela transformação da consciência e dos valores e comportamentos da sociedade dos anos 60 e 70, visando a livre e orgânica expressão. Entre os músicos que tocaram no Festival estão Jimi Hendrix, Janis Joplin, The Who, entre outros artistas que marcaram o rock desse período nos EUA.

Tropicalismo

No final da década de 60 nascia no Brasil um movimento musical responsável por romper e revolucionar a cultura do país. O tropicalismo reunia um posicionamento político contra a ditadura com guitarras elétricas – influência do rock que estava crescendo e se instalando cada vez mais nos países do ocidente – e letras de protesto ao cenário de opressão que duramente se instalou em 1964.

Psicodelia e MPB (Música Popular Brasileira). Uma combinação que hoje parece estranha, mas foi essa junção da música pós-bossa com o movimento hippie dos EUA que formou um dos momentos mais marcantes da música brasileira. A sonoridade gritante e rasgada das guitarras juntamente com o ritmo descontraído da música popular se uniram e disfarçavam letras de protesto, que transmitiam a insatisfação dos artistas em relação ao regime dos militares. Músicos como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto GIl e Gal Costa fizeram parte desse coletivo e deram início a um novo entendimento da música, que servia como expressão de opinião.

A repressão militar contra o Tropicalismo crescia e, quando Médici assumiu o poder, a produção artística e intelectual não passou por sua aprovação e foi dissolvida, junto com o movimento cultural de vanguarda. Porém, o cenário pós-tropicalismo (1969-1974) ainda tinha características musicais remanescentes e foram elas que fizeram parte do Festival de Águas Claras.

Águas Claras

As influências do Woodstock vieram para o Brasil com pessoas marcadas por solos de guitarra e letras que impactaram muitos jovens, como Antonio Checchin Junior. Conhecido como Leivinha, ele foi o idealizador do Festival de Águas Claras. Inicialmente a ideia era realizar uma peça de teatro que havia escrito, mas no decorrer do tempo e conversando com os amigos, o evento se tornou um festival de música, misturando grandes nomes do MPB e do rock nacional, como Gilberto Gil, Alceu Valença, Raul Seixas, Hermeto Pascoal. O Festival de Águas Claras aconteceu pela primeira vez em 1975 e depois teve outras edições em 1981, 1983 e 1984, sendo que todas aconteceram na fazenda da família de Leivinha na cidade de Iacanga, no interior de São Paulo.

A segunda edição era para ter acontecido dois anos após a primeira, mas por conta da repressão do governo militar ela não pôde ser realizada, como conta Gabriela Tagliacozzo, que esteve presente na segunda edição do evento em 1981 junto aos amigos. “Depois do atraso da data, existia a ansiedade por uma abertura e alcance maior do evento. Percebi que as pessoas que estavam lá já tinham uma outra mentalidade, e assim se instalou uma espécie de consciência coletiva, de pessoas que queriam coisas diferentes daquilo que estava acontecendo no Brasil. Queríamos uma abertura, mais cultura, mais acesso à música, menos censura”, conta.

Na época, o festival não foi muito divulgado. “Eu fiquei sabendo do festival não me lembro por quem, mas foi por um ‘boca a boca’. Talvez uma amiga que tinha uma fazenda ali pertinho de onde acontecia o Águas Claras”, relembra Silvia Handroo, 54. Por mais que a imprensa não tivesse divulgado, o “boca a boca” atingiu mais de 10 mil pessoas de todos os lugares do país, que saíram de suas casas buscando algo em comum: se conectar com a música.

“Foi o único momento na minha vida onde eu pude ver grandes músicos, compositores da música brasileira, todos reunidos no mesmo local e de uma maneira muito despojada. A gente se sentia livre lá. Tinha um clima de companheirismo entre as pessoas, uma sensação de liberdade muito grande, tanto de quem estava lá assistindo como de quem tava participando do festival”, relata Handroo.

O Barato de Iacanga (2019) – Direção: Thiago Mattar

O Festival de Águas Claras foi tão marcante que há dez anos Thiago Mattar,  jornalista, cineasta e parente de Leivinha, decidiu resgatar as memórias e os dias vividos durante as quatro edições do festival. Em parceria com a produtora bigBonsai, Mattar transformou o evento em documentário, disponível na plataforma de streaming Netflix:  O Barato de Iacanga (2019).

O filme percorre a história e mostra com cenas inéditas desde os primeiros rascunhos e idealizações do festival até as grandes apresentações que marcaram o evento. Com ajuda de toda a família, a fazenda se tornou um abrigo para o público, que ia se instalando com suas barracas para aproveitar os quatro dias sem perder nenhum segundo, já que os shows aconteciam quase que ininterruptamente.

Entre os diversos entrevistados está o fotógrafo Miguel Ângelo, que foi até o Festival por ordem do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) com o intuito de fotografar e passar informações para o governo. Mais tarde, essas fotos foram arquivadas em um dossiê que, juntamente a outra informações coletadas, levou à medida de proibir o festival.

Em uma entrevista ao podcast “Música Crônica”, Mattar afirmou que no documentário, Ângelo era uma caricatura e representava toda a direita brasileira e o lado político de repressão presente na ditadura, sendo importante manter a memória para que aquele cenário não volte a acontecer. “Essa é a reflexão que eu acho que o filme traz, da importância da memória para a gente não distorcer o futuro”, afirma o cineasta.

Em relação aos shows, o documentário retrata as apresentações de maneira crua e encantadora. Cada artista tinha sua arte e seu modo de expressar a música, e foi essa espontaneidade da época que fez com que o festival tivesse tamanha importância. “Foi um deslumbramento, uma descoberta de um mundo que pra mim antes não existia. Águas Claras criou uma espécie de um espaço interno de coisas que eu nem sabia que eram possíveis e que, de repente, quando você convive e faz parte, percebe que é algo bem maior do que você”, relata Tagliacozzo.

“Eu lembro que a gente chegou lá numa noite fria e era show do Raul Seixas. Ele me impactou de uma maneira tão… densa. Eu lembro que a gente era novinho e ficamos até com medo”, conta Handroo. “No dia seguinte, meio dia teve show do Luiz Gonzaga. Ele levantou aquele público com uma inocência, com uma luz. Dois artistas poderosíssimos, cada um no seu estilo. A música tem esse poder de mudar o astral, impactar, e a primeira vez que tive clareza disso foi lá.”

———————————————————————-

A matéria acima foi editada por Bruna Sales

Gosta desse tipo de conteúdo? Confira a Her Campus Cásper Líbero!

Mariana Pastorello

Casper Libero '22

Student of journalism, passionate about music, series and culture seeking to find entertainment and unique moments.
Giovanna Pascucci

Casper Libero '22

Estudante de Relações Públicas na Faculdade Cásper Líbero que ama animais e falar sobre séries.