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Flexibilização Da Posse De Armas: Quais Os Efeitos Dos Decretos De Bolsonaro Nos Índices De Homicídio?

This article is written by a student writer from the Her Campus at Casper Libero chapter.

Entenda tudo que muda com as novas normas estabelecidas pelo presidente, os argumentos da defesa e a análise sobre os efeitos dessas atualizações na prática

 

Em 2020, cerca de 80 mil novas armas de fogo foram registradas na Polícia Federal (PF), recorde alcançado principalmente pelas medidas da gestão do presidentee Jair Bolsonaro e sua meta de facilitar o porte de armas no Brasil. Em fevereiro deste ano, mais decretos relacionados a esse tema foram feitos, ou seja, atualizações nas leis que regulamentam o porte de armas foram oficializadas sem passar pelo Congresso. 

Além da discussão política sobre a validade da ação do presidente, questiona-se o efeito que esses decretos terão entre os números de homicídios, feminicídios, suicídios e acidentes domésticos em comparação à necessidade de se cumprir uma promessa de campanha para os eleitores que desejam ampliar a defesa ao patrimônio.

A Her Campus Cásper Líbero explica de uma maneira objetiva quais são as mudanças propostas, os efeitos da decisão na sociedade brasileira, bem como os argumentos daqueles que defendem e lutam contra a flexibilização da legalização das armas.

Mas afinal, o que é porte de arma?

Direito de posse e porte de arma são coisas completamente diferentes. Possuir o direito de adquirir uma arma legalmente permite que o dono mantenha o bem em uma residência ou local de trabalho dos quais seja, necessariamente, responsável legal. Neste caso, o uso da arma segue uma lógica de legítima defesa, ou seja, apenas em caso de necessidade de proteção que possa ser comprovada. Portar a arma, por sua vez, possui um direito extra: a pessoa pode sair para diversos ambientes com a arma.

No Brasil, o porte de arma é regulamentado pela Lei 10.826 de dezembro de 2003, conhecida popularmente como “Estatuto do Desarmamento”, o qual determina que o direito de posse é restrito àqueles que puderem comprovar a necessidade, portanto, está longe de dar acesso aos civis. O Artigo 6° proíbe o porte de arma em todo o território nacional, com exceção de casos como os agentes de segurança pública, membros do Exército ou funcionários de empresas privadas de segurança.

O que mudou?

– Decreto 10.630, registro e porte: autoriza o porte de duas armas ao mesmo tempo; amplia a validade do porte de armas para todo o território nacional.

– Decreto 10.629, colecionadores, atiradores e caçadores (CACs): retira a necessidade de exame psicológico, autorizando que colecionadores, atiradores e caçadores comprovem aptidão psicológica a partir de laudos fornecidos por qualquer psicólogo em atividade. Permite que cidadãos entre 18 a 25 anos obtenham certificado de registro de CAC, mesmo não podendo comprar armas. Exclui a obrigatoriedade de autorização do Comando do Exército para a compra de até 60 armas para atiradores, 30 armadas para caçadores e 10 para colecionadores.

– Decreto 10.628, limite de armas: amplia a quantidade de armas permitidas para defesa pessoal, passando de quatro para seis; permite que atiradores desportivos e profissionais de segurança pública tenham armas particulares para prestar testes de aptidão técnica. Libera que agentes e guardas profissionais, integrantes das polícias penais, da segurança pública, da magistratura e Ministério Público adquiram mais duas armas de uso restrito, além do limite já instituído de seis armas.

– Decreto 10.627, produtos controlados: autoriza que armas automáticas com mais de 40 anos de fabricação sejam colecionadas; estabelece que  as empresas que adquirem armas de pressão não precisam se registrar no Exército. Legaliza a prática de tiro recreativo não esportivo, com arma de clube ou instrutor. Facilita a comprovação de habilidade do atirador, reduzindo a obrigatoriedade de oito idas ao clube de tiro por ano para seis idas. Permite a compra anual de até cinco mil cartuchos para agentes das forças de segurança e membros da magistratura e do Ministério Público. Autoriza que cidadãos comuns aptos realizem cursos de caça e armamentos, retirando a exclusividade para associados das instituições que oferecem os cursos. Retira uma série de itens de Produtos Controlados pelo Exército (PCE), como projéteis, miras telescópicas e máquinas para recarga de munições.

O que dizem aqueles que defendem a flexibilização do acesso às armas?

“A justificativa para este aumento é que os calibres restritos ainda são muito utilizados pelos atiradores e caçadores, nas competições com armas longas raiadas, assim como nas atividades de caça. Um competidor facilmente realiza 500 tiros por mês, somente em treinamentos, de modo que as 1.000 unidades de munição e insumos para recarga atualmente previstas não são suficientes nem para participar do Campeonato Brasileiro, que são 10 etapas ao longo do ano”, diz oficialmente o Palácio do Planalto, em nota divulgada à imprensa para divulgar as mudanças. 

Antes da votação em 2019 na Comissão do Senado sobre o decreto que flexibiliza as regras para o porte de armas, o relator, Marcos Val, defendeu sua causa: “Não custa lembrar que a nova regulamentação da posse e do porte de arma de fogo sempre foi uma das bandeiras políticas do presidente da República, Jair Bolsonaro, eleito com quase 60 milhões de votos.”

O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, também defendeu o mudanças no Estatuto do Desarmamento nesta ocasião: “Existe um ditado popular que diz: ‘Quando a arma que mata defende a liberdade e o direito de viver, os anjos choram, mas não condenam’. O que mais me impressiona é como parece que estamos vivendo num paraíso de segurança pública. Mas é um modelo falido. O Brasil é recordista mundial de homicídios cometidos por armas de fogo. Por causa dessa política desarmamentista, que apenas olha o marginal como excluído da sociedade”.

O que dizem aqueles que são contra a flexibilização?

“Sou da Paz” começou como uma campanha pelo desarmamento, lançada em 1997 por estudantes brasileiros em meio a uma realidade nacional sem regulamentações restritivas sobre a posse de armas. Um estudo da ONU, realizado em 1996, apontava o Brasil como o país onde mais se matava por armas de fogo em todo o mundo. A campanha ganhou apoio de personalidades dos meios jornalístico, publicitário, artístico e esportivo, além de organizações como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Comissão de Justiça e Paz.

Com tanto alcance, a campanha falou sobre o tema na mídia, realizou palestras, debates e promoveu a primeira campanha de desarmamento voluntário do país, a qual arrecadou  cerca de 3.500 armas apenas na cidade de São Paulo. Diante do apoio popular, o Congresso propôs medidas concretas de restrição ao uso de armas. Em 1999, a campanha se tornou uma organização sólida e permanente, o Instituto Sou da Paz, responsável por atuar em conjunto com a gestão política na aprovação do Estatuto do Desarmamento e sua implementação.

Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, deu uma entrevista exclusiva à Her Campus Cásper Líbero sobre os decretos do governo Bolsonaro que têm modificado o Estatuto.

Em sua fala, o senador Flávio Bolsonaro afirma que a política desarmamentista foca no olhar para a população marginalizada pela desigualdade social, mas durante a entrevista, Pollachi trouxe um posicionamento baseado em índices sobre homicídios. A gerente de projetos resume a luta contra a flexibilização do acesso às armas em três pontos.

Questionamento sobre “os cidadãos de bem”

“O dono da arma pode cometer um crime após adquirir a arma, porque mesmo com motivações legítimas e bem intencionadas, é muito fácil que as pessoas percam o controle emocional e a disponibilidade de uma arma permite uma reação violenta muito letal em pouquíssimos segundos. Uma briga de vizinhos, no trânsito, dinâmicas de violência de gênero… Mesmo quando a pessoa possui uma intenção de violência e porte uma arma branca, essas são dinâmicas que são mais lentas e podem gerar efeitos menos graves do que a reação de alguém que esteja com uma arma de fogo na mão”, pontua Pollachi.

Dentro deste tópico, vale reforçar que os índices de feminicídio demonstram descontrole da segurança pública em relação à violência contra as mulheres. “Homens que se mostravam ser cidadãos de bem até o dia que perdem o controle e deixam de ser. Mesmo sem antecedentes criminais, com testes psicológicos e de aptidão, tudo isso junto ainda não garante que essa seja uma pessoa 100% confiável”. 

Para completar, os decretos de Bolsonaro prolongaram o prazo para atualizar o registro da arma e, consequentemente, ampliaram o intervalo entre os testes psicológicos. “Então todos esses testes, que antes eram repetidos a cada 5 anos, agora se prolongaram para 10. Sua estabilidade emocional pode mudar muito em uma década”.

Até mesmo policiais morrem ao reagir em assaltos

“A gente vê que muitas pessoas desejam adquirir armas em tentativa de defesa e acabam agravando a dinâmica. Uma pessoa que, por exemplo, iria sofrer um roubo, que é um crime patrimonial que deve ser combatido e é traumático, provavelmente pode acabar transformando a situação em um latrocínio com uma arma na mão, pois pode acabar perdendo a vida ou até mesmo gerar um tiroteio que atinge as pessoas no entorno. Existe uma pesquisa, publicada pelo IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), que identificou que em 70% dos casos de reação armada a vítima levou um tiro. A gente percebe essa relação mesmo entre os policiais – importante dizer isso porque muitas pessoas dizem que querem se preparar, frequentar clubes de tiro – não é a mesma coisa”, argumenta a gerente de projetos do Instituto.

“Até entre os policiais, que possuem treinamentos mais intensos que o de qualquer civil, há um número de mortes elevadas devido à reação aos assaltos em folga. São mais mortes do que em horário de trabalho durante confrontos. Isso acontece porque o roubo é sempre em um momento de distração”, completa.

O número de armas na criminalidade cresce

“Após um furto ou tentativa de reação armada, a pessoa pode ter a sua arma furtada, aumentando a quantidade de armas dentro da ilegalidade por décadas, porque a arma é um bem que pode durar muito tempo. Há também pessoas mal intencionadas que se registram legalmente e adquirem a arma para desviar para o mercado ilegal, porque basta ser uma pessoa sem antecedentes criminais para poder ser aliciada”, explica Pollachi.

A representante do Instituto Sou da Paz chamou a atenção também para a fragilização dos meios de fiscalização diante desta expansão do número de armas em circulação, afinal, as pessoas só prestam contas sobre o status da arma a cada dez anos. “Em 2020, o presidente também mandou revogar três portarias do exército que haviam avançado com um sistema eletrônico de fiscalização. Isto é, o exército melhorou a fiscalização com esse sistema e o presidente mandou tirar do ar, sem justificativa técnica plausível”, afirma.

O Instituto Sou da Paz também cita o problema que a flexibilização pode causar nos índices de acidentes com armas e suicídios. Além disso, o envolvimento de jovens neste universo de tiros é outra questão a ser debatida. A Her Campus Cásper Líbero apurou dados e casos que demonstram a importância de se repensar os atuais decretos no Estatuto do Desarmamento.

Armas & Crianças

Dados do Ministério da Saúde, levantados pelo jornal Folha de S. Paulo, mostram que entre 2015 e 2018, antes mesmo das atuais alterações no Estatuto, a cada três dias uma criança de até 14 anos entrou em um hospital do Brasil por conta de um acidente doméstico com arma de fogo, legais e ilegais.

Os Estados Unidos, modelo para todos que desejam uma legislação mais flexível em relação à posse de armas, possui 11 vezes mais chances de que a razão da morte de uma criança seja um acidente com armas do que em qualquer outro país membro da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, segundo estudo do órgão em 2016. O relatório aponta ainda que 91% das mortes de crianças e jovens por armas de fogo em países desenvolvidos ocorre nos Estados Unidos.

Em fevereiro deste ano, uma arma disparou durante uma brincadeira entre crianças de 4 e 5 anos em João Pinheiro, interior paulista. A informação divulgada à imprensa pela PM foi de que a arma pertencia ao dono da casa, que a mantinha guardada em uma cômoda dentro de um quarto, o qual estava sempre trancado. Durante uma reunião de família, as duas crianças se distanciaram dos adultos em meio à brincadeira, uma delas disparou a arma, o tiro atingiu a outra criança, que já chegou ao hospital sem vida.

Adolescentes em clubes de tiro

Em maio de 2019, uma medida de Bolsonaro definiu que jovens, a partir de 14 anos, precisam apenas da permissão dos responsáveis para praticar atividades esportivas com armas. Esse é o caso de uma adolescente em Cuiabá, Mato Grosso, que baleou a amiga Isabele.

A garota afirma que foi acidental, mas as investigações da Polícia Civil afirmam que houve a intenção de matar. A adolescente que atirou em Isabele praticava tiro esportivo desde o fim do ano passado, assim como seus três irmãos, participou de duas competições e venceu uma delas.

Suicídio

A Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard apurou em uma pesquisa que no ano de 2019, descartados fatores de risco para suicídio, como doenças psiquiátricas, pobreza, desemprego ou dependência química, a chance de alguém se matar era maior em uma residência com uma arma de fogo, mesmo que guardada no cofre. 

No Brasil, dados do Ministério da Saúde apontam que, entre 2010 e 2016, os suicídios aumentaram 18%, sendo 8%  cometidos com arma de fogo.

“O Instituto Sou da Paz é contra a flexibilização do acesso às armas de fogo, munições e flexibilização do porte de armas de fogo nas ruas por pessoas comuns. A gente entende que isso possui uma série de consequências negativas para a segurança pública. Mais armas em circulação, em nossa realidade brasileira, significam mais homicídios. A gente precisa olhar para o nosso contexto de enorme desigualdade socioeconômica. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) desenvolveu uma pesquisa muito ampla sobre o tema que aponta que 1% a mais de armas em circulação pode levar a 2% a mais de homicídios no Brasil”, afirma Natália Pollachi.

E, para complementar essa discussão, cabe refletir sobre a própria ação de Jair Bolsonaro ao fazer um decreto que altera nossa legislação de maneira tão abrupta. Um presidente não pode “impor” uma lei sozinho em um regime democrático, seu poder se limita à adicionar detalhes à uma lei por meio de um decreto, visto que qualquer mudança abrupta precisa passar pelo poder legislativo. Ou seja, os decretos feitos pelo atual presidente podem ser questionados e invalidados pelo Supremo Tribunal de Justiça (STF), já que modificam completamente o que encontramos atualmente no Estatuto do Desarmamento.

“A gente, no Sou da Paz, e outras entidades que estão acionando esses decretos na Justiça, entendemos que em alguns pontos do decreto o presidente está extrapolando do seu poder regulamentar, alterando pontos previstos pela lei que só poderiam ser modificados pelo Congresso e tramitação legislativa”, justifica a gerente de projetos do Instituto.

O partido PSB apresentou ao STF uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) pedindo a suspensão dos quatro decretos assinados por Bolsonaro. O documento foi entregue a Luiz Fux, ministro e presidente do STF. A ação será apurada entre as pautas do órgão a partir de sexta-feira, 11 de março. 

 

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The article above was edited by Carolina Grassmann.

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Journalism student of Cásper Líbero University and Senior Editor at Her Campus . Follow me: @gabs_sartorato
Carolina is a national contributing writer and was formerly a summer and fall 2021 editorial intern at Her Campus. She's a Brazilian journalist and writer, and she's very passionate about TikTok, coffee shops, and Taylor Swift.