Branqueamento social; marginalização da população negra; violência policial; racismo estrutural. Esses são somente alguns temas que constam na lista de pautas essenciais ilustradas na última – e primeira – obra cinematográfica dirigida por Lázaro Ramos, Medida Provisória.
Em uma realidade distópica, o filme acompanha a trama de Antonio (Alfred Enoch), André (Seu Jorge), e Capitú (Taís Araújo), três pessoas pretas, no Rio de Janeiro. Nesse contexto, sob o pretexto de uma reparação histórica decorrente da escravidão de 388 anos de duração que assolou o Brasil durante o período de colonização, o governo implementa uma medida provisória que determina o retorno de todos os negros para a sua “pátria nativa”, a África.
Inicialmente, é interessante se atentar a como os acontecimentos se sucederam de modo a resultar em uma medida tão drástica. No início do filme, André e Antônio assistem na televisão a propaganda eleitoral do deputado que tinha essa lei como projeto de governo e, ao se depararem com o “absurdo”, eles riram.
O processo é semelhante ao que levou à eleição de Jair Bolsonaro em 2018. À época, aos discursos que, muitas vezes, violavam direitos básicos de minorias sociais, foi atribuído um caráter cômico. Assim, ninguém acreditava que uma pessoa capaz de entoar ofensas e apologias tão depreciativas poderia, de fato, ser democraticamente eleita. Mas foi. E o mesmo acontece no filme.
Além disso, outro tópico explorado é a forma como o racismo estrutural está enraizado na sociedade. A todo momento, são replicadas no filme frases como: “Não sou racista, porque tenho vizinhos negros”, ou então “Não sou racista, estou apenas cumprindo ordens”, de cunho explicitamente racista. Esta última, por sua vez, foi entoada justamente pela fiscal responsável por administrar o cadastramento dos negros que seriam exilados para a África.
Vale ressaltar, ainda, a retratação da violência, com foco para a policial, em regiões periféricas. Um exemplo disso é que constantemente os protagonistas, que ocupam uma posição privilegiada por terem condições de morar em um apartamento, revelam sua preocupação com os negros que são maioria entre a população que vive em favelas.
A preocupação era fundamentada, já que, nas favelas, as estratégias de “captação” de negros se resumiam a ações policiais violentas nas quais eram utilizadas armas de fogo e bombas, colocando essas pessoas em uma posição completamente vulnerável em um embate totalmente desproporcional.
O branqueamento social e apagamento da cultura negra que é imposto constantemente na surdina dentro da sociedade é retratado com maestria. Certamente, a primeira evidência disso é que os negros eram denominados “melanina acentuada”. Não se utilizavam expressões como negro, preto ou pardo, mas sim melanina acentuada. E isso corrobora o projeto de anular a identidade desses indivíduos, encaixando-os em uma categoria que não os traz reconhecimento como povo.
Outro aspecto que pode ser relacionado à questão de identidade racial são os critérios utilizados pelos órgãos de fiscalização para a captação de negros para o exílio. Nesse contexto, a fiscal Isabel (Adriana Esteves), afirma que o processo será sustentado por reconhecimento visual, anulando, assim, pessoas pretas de pele clara, por exemplo, que devido à ancestralidade, se consideram negras.
Também são explorados traços culturais do movimento negro no Brasil, por exemplo, quando Ivan (Aldri Anunciação) introduz Capitú ao “afrobunker”, esconderijo de resistência, e explica que o lugar era utilizado como depósito de escolas de samba na época em que “o carnaval ainda não era proibido”. Dessa forma, revelando os vínculos entre o carnaval e as raízes afro presentes no Brasil, que também foram apagadas nesse projeto de branqueamento.
A lista de eixos temáticos que podem ser desenvolvidos a partir da análise do filme Medida Provisória é praticamente infindável. As reflexões e narrativas apresentadas ao espectador o proporcionam uma transformação na forma de ver o mundo, percebendo com muito mais cuidado manifestações da sociedade racista vigente. Além, é claro, da experiência de assistir o filme em si, que não desvia a atenção por um só minuto.
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O artigo acima foi editado por Izabella Giannola.
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