No filme de ficção científica Matrix, o protagonista precisa escolher entre tomar duas pílulas: uma azul, que ao ser tomada faria com que ele continuasse no mundo da ilusão, da ignorância, e outra vermelha, que abriria seus olhos para a verdade.
Em uma realidade não tão mágica, o termo Red Pill (ou pílula vermelha), é hoje o nome dado a um dos mais conhecidos “movimentos de masculinidade” que surgiram nos últimos anos, onde é pregado que os homens precisam tomar consciência de que as mulheres são as vilãs da sociedade, e só quando estas forem rebaixadas e “colocadas em seu devido lugar”, eles conseguirão assumir a identidade de homens “machos alfa”.
O tema veio à tona recentemente nas redes sociais, por conta de um episódio envolvendo um coaching de masculinidade. Thiago Schutz, adepto à filosofia do red pill, teve suas falas misóginas viralizadas na internet. Quando a humorista Livia La Gato satirizou, por meio de um reels, uma história de teor machista contada por ele em seu próprio podcast, o influenciador a ameaçou para que tirasse a postagem do ar.
O “masculinismo” (crença na supremacia masculina) em sua essência não é uma ideia nova, mas movimentos de ódio ao sexo feminino têm ganhado mais visibilidade na internet nos últimos anos. Discursos que, a princípio, parecem ter um caráter de autoajuda para que homens atinjam sua melhor versão, na verdade, estão repletos de pensamentos misóginos e machistas.
Em entrevista ao programa Como é que é da Folha de São Paulo, a antropóloga Isabela Kalil diz que a maior representatividade de mulheres na indústria do entretenimento, política, no mercado de trabalho e na sociedade como um todo nas últimas décadas, acabou impulsionando a criação desses grupos supremacistas. A explicação para isso é que os homens adeptos a esses movimentos afirmam que as mulheres estariam ocupando os lugares que antes pertenciam a eles, e isso levaria a uma submissão masculina e a perda de seus direitos.
Por essa razão, um dos princípios do red pill é o ressentimento para com as mulheres, e encoraja seus membros a enxergarem essa realidade e a “dar o troco”. Tais homens fazem isso oprimindo, humilhando e difamando mulheres, para mostrar que não caem nas “manipulações e tentativas de controle” dessas sobre eles.
A advogada Isadora Balem, especialista em direito da família e pós-graduada em advocacia feminista e direito das mulheres, explica o perigo do movimento red pill, e como ele ameça os direitos que as mulheres já conquistaram até o presente:
“A gente diz que toda conquista de direitos vem após muita luta e mobilização de mulheres. Todos os direitos foram conquistados, não dados, então eles (homens) fazem um estardalhaço quando essas conquistas ocorrem, e se tem uma mobilização para tentar neutralizar os avanços que esses direitos trazem.
Isso é chamado de “efeito ricochete” ou backlash, e foi feito em todas as leis que beneficiam as mulheres”
Por esse motivo, explica Isadora, que qualquer movimento que contenha viés misógino e seja contra a ampliação dos direitos da mulher, vai tentar neutralizar os efeitos positivos de uma legislação feminina.
“A partir do momento que eles estão organizados de forma massiva na internet para atacar mulheres, isso enfraquece e coloca empecilhos na nossa organização, além da maior capacidade de homens fazerem lobby em frente a parlamentares para que prevaleçam seus interesses. Também prolongam litígios e distribuem vários processos, para cansar ou enfraquecer mulheres perante o judiciário”
Os participantes desses grupos extremistas dizem sofrer muitas vezes de misandria (o ódio aos homens, contrário da misoginia), mas para a advogada, afirmar isso é irreal
“Esse pensamento é falacioso na advocacia para mulheres, porque em nenhum momento se elege alvo individuais ou coletivos. O problema nunca são os homens, mas sim as estruturas de poder em que são invisibilizadas situações de desvantagens para mulheres, como a pensão fixada de forma injusta, a ausência de valorização de trabalhos de cuidado, reprodutivos, e o descaso com violências psicológicas e patrimoniais”, ela enfatiza.
“Claro que existem situações onde o homem se prevalece do sistema de uma sociedade machista, que reflete nas instituições, para obter posições de vantagem,” continua, “Mas não quer dizer que assumimos que todo homem seja assim e que devemos destruí-los, nosso objetivo é garantir através da visibilização e valorização adequada dos trabalhos femininos, posições com equidade de gênero”
Uma das grandes preocupações quanto à ascensão do red pill, é o aumento de violências contra a mulher, seja nas redes sociais ou fora delas. Isadora afirma que esse cenário é complexo no Brasil:
“A violência existe no cotidiano das mulheres, nos relacionamentos, nas instituições, na cultura (em forma de piadas machistas e estereótipos de gêneros) e na vida geral.
A gente tem um novo desafio, pois se formaram muitas leis para proteger os direitos das mulheres, mas isso não significa proteção na prática. Óbvio que a legislação é um avanço (até 1988 nós sequer tínhamos essa igualdade perante a lei), mas é importante que nós mulheres saibamos que a conquista formal da lei é insuficiente para nos proteger, isso fica claro quando vemos os índices altíssimos de feminicídio. O Brasil ocupa a quinta posição no ranking mundial de mapeamento de feminicídios, temos cerca de dois estupros por minuto, em que as vítimas são majoritariamente meninas de até treze anos. Além disso, apenas recentemente reconhecemos outras formas de violência previstas na Lei Maria da Penha, como a violência patrimonial, destruição de objetos, psicológica e sexual (que pode ser praticada dentro de relacionamentos longos). Existem violências que usam da internet para difamar mulheres com compartilhamento de fotos e mensagens íntimas, e mobilizações como o red pill, para desqualificar posições de mulheres, que estão reivindicando avanços de direitos“.
Os diversos ataques na internet e no cotidiano confirmam o que já estava claro: a mulher ainda é vista como um objeto por grande parte do sexo masculino, como alguém que ele precisa vencer, dominar. A ideia de igualdade de oportunidades e direitos, embora já exista na teoria, a prática mostra que ainda temos um longo caminho a ser trilhado.
“O principal avanço que devemos tomar para a proteção aos direitos das mulheres hoje não é no legislativo. Trata-se do reconhecimento do machismo na sociedade, nos nossos comportamentos diários, nas instituições, e na denúncia constante dessa prática, para que se mude a mentalidade.”
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Esse texto foi editado por Beatriz Testa.
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