São Paulo, Avenida Brigadeiro Luís Antônio, noite de sábado. Os luxuosos carros que param em frente ao Teatro Renault, não negam o público da peça. Mulheres com vestidos caros, maquiagem e salto alto. Eu, de jeans, tênis e camiseta com estampa de abacaxi, me senti deslocada. Percebi uma grande quantidade de meninos em situação de rua pedindo dinheiro aos homens bem-vestidos que entravam no teatro. A maioria fingia não ouvir. Poucos eram os que negavam ou davam alguma moeda perdida no bolso. Os seguranças do espetáculo faziam o que podiam para afastar os adolescentes, mas era muito difícil não chamar atenção dos pobres garotos que viam um lugar tão iluminado em um centro velho, morto e com todos os comércios fechados naquela hora da noite.
Ignorei os olhares das madames em seus Louboutins e entrei no teatro. Sempre gostei de Fantasma da Ópera e das reflexões que me traz. Lembro quando, em 2006, assisti à peça pela primeira vez, no penúltimo dia de apresentações em São Paulo. Desde então sou apaixonada por musicais. Fiquei feliz quando soube que iria voltar ao mesmo teatro, mas triste ao ver o valor do ingresso. A escolha é clara: ou você paga pouco e não vê nada, ou paga muito e aproveita o espetáculo. Juntei as economias para comprar o ingresso, mas até que não fiquei tão impactada com o valor. Musicais tem seu público muito definido. Entrar naquele teatro me mostrou, mais uma vez, a tristeza do acesso à arte ser tão restrito.
Foto: Playbill
O majestoso lustre me distraiu até o último sinal de que iria começar a apresentação. Luzes apagadas, atores em cena. Um leilão abre a peça, com o macaco que pertencia ao fantasma. A peça começou, assim como uma problematização que eu nunca tinha feito antes. Acho que o feminismo entrou em minha vida depois da paixão por essa peça. O Fantasma tem uma obsessão tão grande por Christine que acha que ela é obrigada a corresponder ao sentimento. Ela é sequestrada, enganada e privada de suas escolhas.
A peça tem uma problemática bem forte, justamente pelo Fantasma ser um assassino que “tem motivo”. Com sua face deformada e máscara que cobre apenas metade do rosto, ele constrói um personagem que tem apenas um objetivo: conquistar a dançarina que possui uma voz angelical: Christine. Ele se aproveita da ingenuidade da moça que perdeu o pai na infância, para, por anos, se apresentar como “anjo da música” enquanto ela faz suas orações. Quando ela finalmente tem a oportunidade de ser a estrela do teatro onde trabalha (graças ao intermédio obscuro e fantasmagórico dele), ele aparece no espelho da jovem e a leva para seu esconderijo. É medonho pensar que ele poderia estar atrás do espelho o tempo todo.
Foto: NPR
Ao perceber a paixão de sua amada por Raoul, um amigo de infância, o “anjo” fica furioso e faz de tudo para sabotar o romance, mas o relacionamento acaba se tornando um noivado. Após várias tentativas, inclusive tentar fingir que é o espírito de seu pai quando ela vai visitar o túmulo do progenitor, o Fantasma sequestra Christine e faz com que ela escolha: ficar com ele para sempre ou a morte de Raoul. Contrária ao que seu noivo dizia, para evitar que o assassino matasse seu amado, a jovem escolhe ficar com o assassino e lhe dá um beijo. Nesse momento, o Fantasma se sente amado e percebe que aquilo sempre foi o que quis, mas não daquele jeito. Só então libera Christine manda “serem felizes”. Um relacionamento tóxico e abusivo tão assustador quanto romantizado pela peça. O Fantasma é praticamente o precursor dos stalkers das redes sociais.
Saí do teatro feliz com a apresentação e ainda amando muito o musical. Com certeza, sempre que tiver oportunidade, prestigiarei onde quer que esteja, mas agora com um olhar diferente, de quem usa o teatro não só para lazer, mas sim como palco de problematização.