Esses dias li A Natureza da Mordida, de Carla Madeira, em um só fim de semana. Devorei rezando a história de Biá e Tereza, e de Olivia e Rita. Todas elas contadas através das conversas de Biá e Olivia e, depois, de Tereza e Olívia. Conversas entre mulheres, que só poderiam acontecer entre elas.
Não há nada mais reconfortante que ler histórias sobre mulheres e suas mentes malucas e complexas. Histórias de como crescem com uma ideia sobre a vida, viram adolescentes apaixonadas e com avidez por viver aventuras, passam por diversas crises no início da vida adulta e descobrem realmente o sentido de todas as mudanças com a maturidade.
Uma das leituras que mais me fizerem sentir a grandiosidade da passagem da vida sob a ótica de uma mulher foi A Amiga Genial e a tetralogia napolitana, de Elena Ferrante. Poderia falar por horas sobre como é bonito ver Lenu, a menina envergonhada e inteligente, se tornar mulher. Imaginei cada cena em que ela lia debaixo do Sol na sua primeira viagem a Ischia, cada caminhada descobrindo Florença, para onde se mudou para estudar sozinha, cada cena de amor que vivia com Nino, seu salvador e destruidor de sua vida. Mas, principalmente, amei acompanhar a sua amizade com Lila – quem mais a inspirou e encorajou -, sua relação com a mãe – tão distante, mas tão presente – e seu transformar-se em mãe e sua relação desromantizada com a maternidade.
E como dizer que um homem escreveria isso? Elena Ferrante, o codinome da (o) real autora (o) dos diversos livros italianos, nuca teve sua identidade provada. Houve um dia em que alguém resolveu seguir seus passos e chegou ao nome do escritor italiano Domenico Starnone e de sua mulher, Anita Raja. Os dois não confirmaram a identidade, mas muitos ficaram com o nome do autor na cabeça, visto que Elena poderia ser seu alterego feminino.
Mas outros, eu inclusa, pensam pelo completo contrário. Como poderia um homem escrever tais histórias femininas? Nunca poderia descrever o amor e a amizade entre mulheres, ou entender a relação que temos com nossas amigas, como ficamos cegas de amor por eles, rapazes alheios a tudo que se passa em nossa mente. Nunca poderia ser.
Tive diferentes, mas semelhantes sensações ao ler os escritos da mente maluca de Sylvia Plath, os contos e crônicas de Clarice Lispector, Carolina Maria de Jesus e até Eliane Brum, com sua forma sensível de contar histórias de outras pessoas. Não poderia esquecer de Annie Ernaux, que, sim, ganhou um Nobel por contar histórias sobre si mesma, porque estamos interessadas em ler seus diários e nos identificar com seus pensamentos. Nem tampouco posso deixar de fora Paula Pimenta e Thalita Rebouças, que me acompanharam em fases tão novas, desenvolvendo o amor pela leitura e me identificando com os mesmos pensamentos das personagens. E, claro, Carla Madeira e sua maneira de nos surpreender com as ações e decisões de suas fortes mulheres.
Enquanto experiencio tais leituras apaixonantes e intrigantes, ninguém acharia ruim que desprezasse clássicos masculinos, não é? Me perdoa se eu dissesse que dispenso mais um Kafka, depois de ler O Processo e sua extremamente burocrática história sem meio nem fim? Ou ainda os diversos títulos de Mérito do trabalho, Você consegue ou O poder da dedicação, tão famosos entre os diversos homens de sucesso de hoje, que não levam em conta os “pequenos” detalhes da mulher! Temos que lembrar a eles dos dias de menstruação e cólica, das mudanças de humor, das diversas dúvidas em nossas cabeças, dos filhos doentes, do pós-parto cheio de hormônios… Sim, temos que lembrar. Não sei o que se passa na cabeça deles, mas com certeza ignoram os próprios momentos de loucura, os próprios dias em que tudo dá errado, as tristezas, as saudades e tudo o que os fazem humanos.
Este texto não é uma carta de repúdio aos importantíssimos escritores da nossa e de toda a história. Pela forma como fomos feitos, com o homem ocupando o papel principal de provedor de casa e alimento para a família e, depois, de intelectual reconhecido, seria antinatural, desrespeitoso e anacrônico dizer que devemos parar de ler seus livros. Nada seríamos sem a epopeia de Gilgamesh, o primeiro romance encontrado da história. Por muito tempo, foram os monges que registraram todas as desavenças do mundo. Pouco saberíamos sobre o Brasil antes da colonização sem as cartas de Caminha. E como entenderíamos o Brasil colonial sem Machado de Assis?
Mas, se pudermos fazer escolhas, que escolhamos incentivar as leituras femininas. Que possamos passar às nossas amigas, mães e filhas as palavras de outras mulheres. Que façamos leituras de diários e trocas de poesias. Que continuemos a conversar por meio dos livros, linguagem tão capaz de transmitir nossos sentimentos, nossas loucuras e nosso amor.
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The article above was edited by Milena Casaca.
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