Desde pequenas, mulheres são ensinadas a pertencer a estereótipos de gênero e, por isso, frases como “ela é uma moleca”, “se emagrecer, ficará linda”, “ela tem curvas nos lugares certos”, “essa é para casar” ou “não faça isso, você já é uma mocinha” são algumas das indagações de feminilidade comuns de serem ouvidas.
“D.U.F.F – você conhece, tem ou é”, “Miss Simpatia”, “Orgulho e Preconceito”, “O Amor É Cego” ou até mesmo “O Diabo Veste Prada”, por exemplo, são obras populares que traduzem isso: retratam típicas personagens femininas não “tão” femininas assim, cujas pessoas em seu meio – incluindo ela própria – a julgam inferior por isso.
Ou seja, são mulheres consideradas fora do padrão, majoritariamente por sua aparência e/ou comportamento considerados “pouco femininos”, que “precisam” ser mudadas – como se fosse um problema. Mas o que é, afinal, a feminilidade?
Essa concepção passou e passa por muitas transfigurações por questões culturais e políticas, principalmente. Para falarmos sobre este assunto um tanto quanto delicado, contaremos com a entrevistada Dafne Sena, covereadora da Bancada Feminista PSOL.
Conceito de feminilidade
A partir da etimologia, a “feminilidade” é um substantivo referido à qualidade e ao comportamento esperados de uma mulher. Ser mulher – para além da perspectiva biológica -, por muito tempo, era o equivalente a ser feminina: dócil e delicada, desde a atitude até à vestimenta.
Contudo, o tipo de conduta social mencionado não é necessariamente natural, até porque “Não se nasce mulher, torna-se”, disse uma vez a escritora francesa Simone de Beauvoir. Mas o que isso significa?
Desconstruindo a ideologia
No período pós-Segunda Guerra Mundial, por exemplo, manuais de comportamento feminino eram propagados – tal como apontam estudos da Universidade Paulista (UNIP) – e envolviam a vaidade e submissão deste gênero. A massificação e, consequentemente, a conformidade desse tipo de conteúdo fizeram com que essa atribuição fosse adotada culturalmente.
Em outras palavras, essa construção social foi uma narrativa, enunciada por figuras dominantes – acentuando estruturas arcaicas de poder e desigualdade de gênero -, que restringiu a pluralidade do grupo feminino, limitando-o a uma única forma de ser.
Com a ascensão de movimentos feministas e LGBTQIA+, “ser mulher” se tornou uma expressão mais ampla e subjetiva de se assumir um papel de um roteiro construído constante e culturalmente, tal como apontou Simone de Beauvoir. Por consequência, “ser feminina” se tornou, também, uma ideia livre.
Plataformas como X, Instagram e TikTok, por exemplo, são espaços que trazem essa redefinição de identidade autônoma.Trends exaltando as várias formas de se sentir uma mulher em seu próprio padrão – inclusive o tradicional – são comuns nas redes, reforçando a abstração tanto cultural quanto conceitual.
Análise da tenuidade entre a liberdade e a expectativa socio conceitual
Durante a entrevista, Dafne Sena avaliou a “feminilidade” como uma relação social. É como um indivíduo se relaciona com essa forma de organizar a sociedade.
Para ela, a identidade de gênero, além de uma percepção sociocultural, é uma experiência pessoal moldada por processos internos: a autopercepção. É plausível que pessoas compartilhem certas vivências, mas a forma de expressar a identidade é única.
“Experiências, apesar de compartilhadas, são extremamente individuais. Então, a forma como eu vivo minha identidade diz respeito a processos individuais internos e externos, que se vivem e fazem sentido para a respectiva individualidade, mas nem todo mundo viveu esses processos da mesma forma. A identidade de gênero é como processos individuais que encontram os coletivos, e isso se expressa na pessoa e em sua individualidade”.
Considerando o âmbito sociopolítico, entretanto, Dafne manifesta preocupações acerca do “pacote completo” de gênero, esperado socialmente como uma forma de legitimação de figuras dominantes tal para o grupo feminino, julgando se são mais ou menos mulher.
Contudo, ela deixou claro que “Toda escolha feita consciente – não individualmente – a partir de uma consciência ampla é válida. Então, não é que seja inválido mulheres agirem da forma que esperam e querem que ela aja. Todas nossas escolhas, sejam elas disruptivas ou não desse sistema, são feitas a partir do conservadorismo. Inclusive, a mais feminista das feministas pode fazer uma escolha conservadora. É uma organização social. O problema é esse discurso (o conservador) infiltrar ideias e discursos de tal forma em que se diminuam as pautas feministas – o que já ocorre -. Não pode ser colocada a melhor e única forma de ser mulher nesses discursos, pois isso não existe”.
Em outras palavras, com a hierarquia do “ser feminina”, mulheres podem ficar complexadas com a autoimagem e sistemas dominantes são mantidos. Em tempos de transformações no sistema – sejam elas boas ou ruins -, e, em subsequência, nas organizações sociais, as relações sociais mudam. Nesse sentido, mulheres podem ser “bodes expiatórios”.
Ou seja, em contexto de crise política, minorias são vítimas de perseguição física e/ou simbólica a fim de desviar a atenção pública.
Nesse caso, são colocadas expectativas irreais sobre elas e como a alteridade pensa que devem ser, causando polarizações ideológicas sobre a feminilidade – desprezando o cenário em que mulheres são livres e individuais para decidirem como querem “performar”, assim como qualquer ser humano.
“A única constante é a mudança. Enquanto a sociedade evolui e novos sistemas de organização e produção são adotados, essas relações sociais também mudam. Um sistema em declínio, por exemplo, é inevitável a culpabilização em alguém vulnerabilizado – as mulheres, nesse contexto -. Quer dizer, com tantos problemas sociais, a mulher que nasceu “moleca”, que se veste de uma forma considerada masculina” ou com atributos físicos que não agradaram é o que incomoda e causa raiva”, ironizou.
Para Dafne, o maior efeito de mulheres que nasceram com esse script social é o adoecimento mental. Ela reforçou que uma pessoa que não se identifica com expectativas específicas, tomadas muitas vezes como regras, se depara com uma desconformidade e desconexão com a sociedade e comunidade, adoecendo-a mental e socialmente.
Nesse plano mais macrossocial, que mulheres precisam estar complexadas em um sistema de bode expiatório – “ser mais isso, ser mais aquilo, mesmo que em brincadeiras”, segundo ela – é um dispositivo de fortalecimento desse sistema opressor restritivo.
Por isso esse debate sobre “ser feminina” é tão importante. Para que, algum dia, esse adoecimento mental e social acabe e que as mulheres sejam a sua própria versão do que é feminilidade.
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O texto acima foi editado por Eduarda Lessa.
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